Ensaio sobre a enchente

Por Imprensa SEMAPI

 

Por Vera Moura, psicóloga, assessora e integrante do Coletivo de Saúde do SEMAPI

Os cenários são de uma enchente avassaladora, impensável. Os primeiros e inacreditáveis dias deste evento que gerou uma catástrofe socioambiental, de dimensões sem medidas ou parâmetros, compunham um cenário tomado de águas lamacentas e fétidas e o desaparecimento de muitas das características que compõem o cenário das cidades.

Como muitos afirmaram, era o equivalente a um cenário de guerra. Mas, o que sabemos sobre a guerra onde pessoas são mortas por bombas, os prédios são destruídos pelas mesmas bombas, se não por imagens assépticas da televisão e redes sociais.  E por esta referência, percebemos que o cenário de guerra nos aparece com toda a sua frieza, agora que as águas baixaram.

Com estes cenários tão violentos, o que termina de nos engolir é perceber que, quando nos ocupamos da humanização, fazemos parte de uma minoria. Esta tal guerra tem nome equivocado: é uma luta dolorosa de minorias que antecipam desde sempre o estrago que parte dos seres humanos realizam no planeta.

Fala-se de toneladas de entulhos, mas até poucos dias eram objetos que qualquer ser humano tem em casa para facilitar a vida e proporcionar conforto. E, nestes entulhos, estão nossas histórias, fotos, recordações, objetos cujo valor simbólico é único e insubstituível. Com o baixar das águas, sabemos que o silêncio vai se reinstalar. Ou, se teimarmos na reconstrução da resistência, temos que levar em conta que o que move a vida não está na exploração insana e controle da natureza, e sim na composição com o que nos faz respirar para viver.

Resiliência é um conceito interessante, que foi emprestado da física, para a psicologia. Diz que é a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica. Parece confuso, mas não é. Em síntese, quando alguma coisa se livra do que está pressionando, ela volta ao que era antes.

A Psicologia vem trabalhando muito com esta ideia, mas com muitas alterações. Por exemplo, Boris Cyrulnik, é um neuropsiquiatra e psicanalista, ele próprio uma criança que aos 6 anos esteve num campo de concentração, afirma que “a resiliência é de modo algum um relato de sucesso, é a história da luta de uma criança empurrada para a morte que inventa estratégias de volta à vida”.