“Uma cultura da violência racial só se muda com uma ampla ação”
FOTO: Arquivo pessoal
Regina da Silva Miranda é extensionista Rural de Nível Superior da Emater/RS-Ascar e representante sindical do SEMAPI. Na entrevista, ela comenta sobre como enfrentar o racismo nos ambientes de trabalho. Confira:
SEMAPI – Apesar de termos uma legislação clara a respeito de crimes de racismo, os casos seguem ocorrendo. Por que isso acontece?
Regina – Deve-se ao fato de que o racismo é estrutural, institucional e ambiental. O
Brasil foi um dos primeiros a organizar o sistema escravagista de produção e o último a abandoná-lo. Assim, é impossível compreender a história brasileira e a realidade que vivemos hoje dissociada do sistema escravocrata e de suas consequências.
Conforme dados do IBGE, “no continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro. Uma contabilidade que não é exatamente para ser comemorada.”
A escravidão colonial portuguesa teve o Brasil como base para estabelecimento da coroa de Portugal nas Américas, portando era um projeto de ocupação, mas também econômico, já que boa parte da riqueza acumulada no Brasil colônia se deveu a tráfico de escravizados. Implantado por volta de 1530 e perdurou até 1888, foram 358 anos de escravização oficial, fora as décadas que se sucederam em que os libertos continuaram a ser tratados como escravizados, visto que o Brasil não proveu nem uma forma de reparação ao genocídio escravista e a apropriação do trabalho escravizado que erigiu a riqueza das elites agrárias e pré-industriais.
Sem políticas públicas de emprego, renda, direito a terra, habitação, educação, saúde, inclusão social, sendo hostilizadas e criminalizadas as pessoas negras se viam na condição de trabalhar por comida para sobreviverem, muitas vezes em condições de vida altamente vulnerabilizadas.
A expressão criada elucida parte da prática histórica e violenta em que uma família “adota” uma criança negra e a cria como empregada, ainda dizendo que é como se fosse da família, só que não recebe oportunidade de educação, não recebe salário, não tem direitos previdenciários e nem tem direitos de herança. Essa condição é análoga à escravidão.
SEMAPI – Em pleno 2022, temos acompanhado um crescimento de casos de racismo – ou, ao menos, na divulgação dos casos – em todo Brasil. Na maioria, as situações que têm ganhado notoriedade são cotidianas, mas dificilmente registradas nos locais ou durante o expediente de trabalho.
Regina – A escravidão foi a forma colonial de organizar o mundo do trabalho, sua lógica, suas relações e estratégias estão vivas na memória das relações de trabalho atuais, quer conscientemente, quer inconsciente.
O mito da democracia racial foi uma estratégia para mascarar as desigualdades abismais entre brancos, negros e índios, ao mesmo tempo para perpetuar os privilégios brancos.
Num país que se serviu por 4 séculos da escravidão e operou uma abolição sem absolutamente reconhecer o crime cometido e nem repará-lo, é necessário inventar mitos como esses.
A condição de poder entre ser patrão ou ser empregado é totalmente distinta, há um desnível hierárquico, há competição e deslealdade. Uma pessoa que depende de seu salário para sobreviver, muitas vezes se sujeita, calando para evitar danos como ser demitido ou mal avaliado.
As expressões “vitimismo” e “mi-mi-mi” falam muito disso; é a normalização do assédio, silenciando e privando a vítima da condição de se defender. Uma pessoa negra experimenta cotidianamente atos de discriminações de superiores hierárquicos e colegas no mundo do trabalho, até mesmo para entrar nele. A história a expressão “boa aparência” (traduz-se pessoas não negras) fala muito sobre obstáculos para pessoas negras acessarem empregos.
Estudos mostram que quanto mais retinta é a pessoa, mais dificuldade encontra para se colocar no mercado, acessar empregos, e, quando contratada, demora mais para ser promovida, ganha salários menores, é lembrada rapidamente na hora de punição e em programas de desligamento incentivado, enquanto não é lembrada para ocupar cargos de prestígio social, representatividade e visibilidade.
A síndrome de impostor ou impostora acompanha as pessoas negras no mundo do trabalho. Mesmo que tenham percorrido legalmente todos os ritos para o acesso a um dado cargo, quando assumem são consideradas ilegítimas no posto. São testadas continuamente a provarem que são capazes e duvidadas quanto suas capacidades; têm seus saberes e fazeres apropriados por chefias e por colegas, como se não fossem merecedores de reconhecimento. Isso causa uma sobrecarga emocional bárbara ao longo da sua vida profissional, repercutindo em sua saúde mental.
Quando pessoas discriminadas verbalizam descontentamento perante o tratamento visivelmente desigual, são consideradas pessoas difíceis ou encrenqueiras. Nesses casos, utilizam-se os estigmas para justificar o tratamento racista, ou seja, a vítima não é a pessoa que foi discriminada e sim quem praticou o ato discriminatório.
As expressões “fulana é muito legal, mas…” e “fulano é muito legal, só que …” falam muito sobre como são os rótulos que estigmatizam as pessoas negras e têm repercussões avassaladoras na sua vida profissional, na sua empregabilidade, ascensão e no acesso a oportunidades.
SEMAPI – O que explica esta disparidade de olhar?
Regina – Muitos fatos explicam, alguns já mencionados, porém fundamentalmente é a insistência das sociedades (elites privilegiadas) de negar a existência do racismo. Sem admiti-lo, não é possível tomar medidas para sua superação.
SEMAPI – Qual a maior dificuldade do enfrentamento do racismo nos ambientes de trabalho?
Regina – A histórica negação que resulta na inexistência de mecanismo de ouvidoria, escuta, acolhimento e providências quanto aos atos cotidianos de racismo. A inexistência de programas de promoção das relações raciais nos ambientes de trabalho.
SEMAPI – De que forma entidades representativas, como sindicatos, podem e devem atuar para coibir esta prática?
Regina – Propondo programas de promoção das relações raciais, propondo políticas de ouvidoria, escuta, acolhimento e providências quanto aos atos cotidianos de racismo às empresas afiliadas.
Divulgando mídias e realizando atividades de reflexão acerca do racismo e necessidade da promoção da igualdade racial.
SEMAPI – Como colegas podem se unir na luta antirracista nos ambientes de trabalho?
Regina – É necessário desenvolver ações educativas para que as pessoas compreendam melhor as desigualdades raciais e possam rever suas atitudes.
É necessário denunciar as atitudes racistas, desde as mais “sutis” (tipo: tu ficas mais bonita com o teu cabelo preso) até as mais grosseiras.
É necessário punir as pessoas que cometem atos de racismo como uma pedagogia para a desmotivação de atos de discriminação racial.
Uma cultura da violência racial só se muda com uma ampla ação, envolvendo todos os segmentos sociais, mas deve principalmente ter o empenho de Estado, das empresas e Instituições. Principalmente, requer o engajamento das pessoas não discriminadas.
Como diria Angela Davis:
Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.
Fontes consultadas para a entrevista:
https://www.scielo.br/j/pcp/a/gPSLSxDcHDhDccZgpk3GNVG/?lang=pt
https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf
https://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_content&view=article&id=711